
No domingo próximo, dia 31, começa a maior romaria ao Juazeiro do Norte, no Ceará, a terra do Padre Cícero Romão Batista. Calcula-se que um milhão de pessoas se desloca para a cidade santa dos romeiros. Debaixo do sol quente de quase quarenta graus, viajando de ônibus, avião, caminhões pau-de-arara, de carro ou a pé, os devotos chegam para a visita anual ao Padrinho. A mesma Igreja Católica, que no passado suspendeu as ordens do padre e proibiu-o de celebrar missa, tenta beatificá-lo e santificá-lo, num processo que se arrasta, vagarosamente, no Vaticano.
A Igreja Católica precisa do culto ao Padre Cícero para garantir os fieis no seu rebanho cada dia menor. O Padre Cícero, que até a morte sonhou em ser reabilitado, já não precisa da Igreja para ter devotos e ser reverenciado como santo. Algumas irmandades de Juazeiro criaram uma mitologia em que o Padre é uma das três pessoas da Santíssima Trindade, no lugar de Jesus Cristo. Narrativas populares, algumas escritas em cordel, exaltam a castidade de Cícero e o seu nascimento de uma virgem imaculada, como na mitologia cristã.
Especula-se sobre o destino dos votos romeiros. O domingo 31 de outubro, dia da eleição, coincide com a partida dos devotos, rumo à Terra Santa. Eles terão de escolher entre viajar ou votar. O que significa mais para os corações romeiros? Difícil responder. Provavelmente viajarão, como fazem todos os anos, para pagar promessas, comprar bugigangas, tirar retratos, dar sete voltas em torno do cajado da estátua do Horto, apanhar água benta na Igreja dos Franciscanos.
O impasse que tanta preocupação causou aos partidos, mais que aos próprios romeiros, tornou-se signo dessa campanha: ser fiel à crença religiosa ou ao civismo? A eleição presidencial possui contornos mais nebulosos do que a estampa do Padrinho, ladeada pela Mãe das Dores e Frei Damião, enfeitando as paredes das casas sertanejas. O respeito a Cícero é tão grande que as ceramistas de Juazeiro botam para queimar no forno as imagens em barro de todos os santos do céu, mas nunca queimam o Padrinho, por achar uma heresia.
No tempo em que viajava ao Juazeiro trepado num pau-de-arara, estudando as romarias, conheci uma mulher que me falou ter assistido um comício do governador do estado do Ceará. Ela dizia nunca ter visto antes um "governo", referindo-o de maneira abstrata, quase sobrenatural. Na primeira vez que o viu, bateu tanta palma que inchou as mãos, deu tantos vivas que ficou sem voz.
- Já posso morrer, porque vi um "governo" - falou-me emocionada.
Habituada às representações do Padrinho, contemplara em carne e osso a figura do "governo", num tempo em que não havia tantas televisões e o cinema não era para gente simples como ela.
Para os sertanejos, que viajam em paus-de-arara, o presidente da república, ou o "governo", como costumam chamá-lo, continua distante e intangível, envolto numa aura misteriosa, parecendo a que rodeia a cabeça dos santos. O presidente Lula é exceção, o mais materializável de todos, o mais próximo e humano. Daí sua enorme popularidade entre os romeiros, que poderão deixar de viajar ao Juazeiro Santo por acreditarem que o governo Lula terá continuidade.
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